sábado, 30 de outubro de 2010

Eu não costumo rezar, Deus...

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De repente, depois de atravessar a rua, parou em frente de uma igreja e ficou a olhá-la. Há que tempos que não entrava numa igreja! Lembrava-se de ter andado na catequese em pequena e de ter feito a Primeira Comunhão. Depois, como os pais não eram praticantes, desligara-se também de todos os rituais. Continuava parada no passeio, sem saber porquê. Olhou novamente o cimo da escadaria. A porta do lado direito parecia estar aberta. E se entrasse?
Retirou a mochila das costas e carregou-a sob o braço até ao último banco. Fazia fresco ali dentro. Não estava mais ninguém e ela sentiu frio ou qualquer outra sensação que lhe provocou um longo arrepio. Sentou-se e pousou a mochila no genuflexório de madeira encerada.
Ficou por algum tempo a olhar à sua volta. Havia um aroma penetrante e familiar que a fez recuar até à infância... Fechou os olhos e reviu-se ao sair da catequese, num sábado de Inverno em que o salão paroquial tinha acabado de ser encerado. Escorregara, ao dar passagem à catequista, e estatelara-se ao comprido no meio dos colegas. Sorriu mentalmente. Já tinham passado alguns anos, mas recordava-se perfeitamente da aflição da catequista, que temera que ela tivesse partido uma perna...
Abriu os olhos e, pela primeira vez que ali entrara, fixou-se no enorme crucifixo de madeira lá à frente, do lado direito do altar-mor. Então, instintivamente, ajoelhou-se e, sem deixar de olhar a cruz, começou a falar baixinho:
- Eu não costumo rezar, Deus. Tu sabes... Também não venho à missa... Já não me confesso há tanto tempo que nem me lembro quando foi a última vez... Acho que nunca mais pensei nisso, desculpa... - Olhou então para todos os lados e, como ninguém tivesse entrado na igreja, continuou a falar com Deus: - Acho que devia rezar à noite e essas coisas, mas estou sempre cheia de sono e a verdade é que também não me lembro... Mas acredito que existes! E não trocava de religião para uma dessas que prometem milagres e cenas esquisitas. Nem pensar! Acontece que, como sabes, o F., que é meu amigo, está muito doente e... bem... agora, eu precisava mesmo de um milagre, caso não fosse pedir muito. É que os médicos andam à rasca e não sabem o que ele tem, portanto, está tudo bastante confuso. Coitado do F., ele só tem a minha idade! Não está prepaparado para..., enfim, não seria justo ele... quero dizer, talvez já chegue de sofrimento, não achas? Ele até é tão boa pessoa, juro! - Riu-se. - Claro que Tu o conheces bem! - Soltou um longo suspiro, que lhe veio directamente do coração. Depois, procurou os olhos de Cristo, mas Ele estava lá longe, muito longe do último banco... Seria que a veria ali ao fundo? E, se a olhasse, com que olhos a veria? Retomou o discurso: - Pois era isto que eu vinha dizer-Te. A gente já não sabe o que há-de fazer... Os pais dele estão mesmo desorientados e... eu também. - Olhou novamente em seu redor e reparou que uma senhora vestida de preto se tinha vindo sentar no banco da esquerda e orava com um terço nas mãos. Baixou ainda mais o tom de voz: - Se eu me lembrasse, rezava uma daquelas orações que aprendi há séculos, mas acho que já não sei as letras... Desculpa! Ah! - exclamou um pouco alto de mais. Depois, continuou quase em surdina, como se estivesse a contar um segredo: - Lembro-me daquela ao Anjo da Guarda, mas suponho que não dá para o F.. Ele precisa de mais do que um anjo. Muito mais! Fazemos uma coisa: eu vou inventar agora uma oração e conta na mesma, está bem? - Fechou os olhos, uniu as mãos e disse: - Meu Deus, faz com que o F. fique completamente bom depressa e volte para casa, que o hospital é uma grande seca. Amén!
Posto isto, benzeu-se, pegou na mochila e saiu da igreja, em pés de lã, com a cabeça leve, tão leve que, por uns momentos, deixou de pensar.
Ao descer a escadaria, encontrou um pobre sem idade definida, com o rosto pálido, cansado e olheiras muito fundas, que lhe sorriu. Estranhamente, não lhe pediu dinheiro - nem mesmo através do sorriso. Não lhe pedia nada! E ela, sem saber por que razão, deu-lhe um aperto de mão demorado, fitandoo, sem receio, nos olhos fundos e pacientes, que, curiosamente, lhe pareceram muito familiares. Seriam os mesmos da cruz? Os que ela não chegara a ver por estar tão longe? Sorriu-lhe então como se o conhecesse desde pequena e há muito não o visse. Depois, seguiu finalmente para casa.
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Maria Teresa Maia Gonzalez & Maria do Rosário Pedreira, O Clube das Chaves e os animais desaparecidos